quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Sutra Do Girassol


Caminhei nas margens do abandonado cais de lata onde outrora 
descarregavam banana e fui sentar na sombra enorme de uma locomotiva lá perto 
para olhar e chorar o sol morrendo em ladeiras sobre as casas todas iguais. 
Jack amigo Kerouac sentou-se ao lado no ferro de um mastro roto partido 
e a gente caiu na maior fossa do mundo, os dois ilhados, dois contidos 
na rede das raízes de aço, 
e eu e Jack pensando os mesmos pensamentos da alma. 

No rio a correnteza de óleo refletia o céu rubro, o sol caía 
pelas alturas finais de San Francisco, sem que houvesse 
peixe nessas águas, sem que houvesse um ermitão nas montanhas, só a gente 
com olhos de ressaca e remela, feito vagabundos, cheios de astúcia e cansaço. 
Olha só um girassol, Jack então disse, e havia o vulto inerte e cinzento 
seco, do tamanho de um homem, recostado 
num monte milenar de serragem. 
- Eu pulei de alegria e era o primeiro girassol de minha vida, eram memórias 
de Blake – essas visões – o Harlem 
e os rios do inferno-leste, sanduíches indigestos trotando 
um ranger de pontes, carrinhos de bebê encalhados, esquecidos 
pneus de bojo negro careca, penicos 
& camisas-de-vênus, o poema da margem, canivetes, nada inox, só o mofo 
o lixo de tantas coisas cortantes cujo fio passava 
para o passado - 
e o cinzento girassol se equilibrando ao sol-posto, 
desmanchando-se abatido na invasão da fuligem, da fumaça, do pó 
de velhas locomotivas no olho - 
corola e também coroa com as pontas amassadas virando, com sementes 
despencando do rosto, rompendo em breves dentes um dia 
claro, raios de sol grudando em seu cabelo riscado 
como uma exangue teia de aranha de arame; 
caule com braços-folhas jogados, os gestos da raiz de serragem, 
pedaços de reboco minando nos galinhos queimados 
e uma mosca estagnada no ouvido, 
você de fato era uma incrível coisa imprestável, ó meu girassol minha 
alma, e como eu te amei então! 
sujeira não era parte do homem, era a parte da morte e das locomotivas 
humanas,
simples roupa empoeirada, o simples véu da pele férrea, a cara 
da fumaça, as pálpebras da escura miséria, a mão 
ou falo ou tumor mortiço do imundo motor moderno industrificial disso 
tudo, o bafo da civilização poluindo 
tua coroa muito louca de ouro - 
esses turvos pensamentos de morte, a grande falta 
de amor em fins e olhos tapados, raízes abafadas em areia 
e serragem, os dólares raspantes elásticos, o couro das máquinas, as 
tripas enroscadas de um carente carro que tosse, as solitárias 
latas baratas com línguas rotas de fora, e o que mais seja, a cinza 
que escorre pela boca na ereção de um charuto, a boceta 
de um carrinho de mão, ou os seios acesos de viaturas lácteas, o rabo gasto 
que as cadeiras expelem, o esfíncter dos dínamos – tudo 
isso embolado nas raízes-múmias - 
e você aí de pé na minha 
na tarde da minha frente, a sua glória em sua forma! 
beleza perfeita, um girassol! uma tranqüila e girassol existência 
excelente e perfeita! um olho doce natural para a melancolia da lua 
nova, desperto vivo excitado 
sacando no crepúsculo sombra a brisa mensual de ouro aurora! 
enquanto você lançava blasfêmias 
para o céu da via férrea e sua própria floralma, 
quantas moscas zumbiram na sua extrema imundície 
sem ligar para nada? 
Quando, flormortapobre, você esqueceu que é uma flor? 
quando olhou sua pele e decidiu que era a velha 
suja locomotiva impotente? o fantasma de uma 
locomotiva? o espectro e sombra de uma já poderosa 
locomotiva americana maluca? 
não, girassol, você não foi locomotiva nunca, você foi sempre um girassol! 
você, locomotiva, você é o motivo louco de sempre, a locomotiva! 
pensando isso peguei o grosso girassol esqueleto e o finquei a meu lado 
como um cetro 
fiz o meu sermão à minha alma, e também à de Jack, e tambérn à de todos 
que ainda queiram ouvir: 
Não somos a sujeira da pele, não somos nossa locomotiva medonha triste 
poeirenta com ausência de imagem, nós somos todos uns lindos girassóis 
por dentro, somos sagrados por nossas próprias sementes & 
peludos pelados dourados corpos de ação virando girassóis ao crepúsculo 
loucos girassóis formais e negros que esses olhos espiam 
na sombra da locomotiva maluca margem beira 
San ladeiras Francisco 
tarde de lata 
sol-posto sentar-se vision



de: Allen Ginsberg
traduzido por: Leonardo Fróes

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